Roleta ou borboleta?

Acordo de um pulo. Reflexo de um pesadelo infantil. Ainda ofegante, bato os olhos no rádio:relógio:despertador sobre a mesa de cabeceira. Os números 00:00, em verde limão, piscam no visor. Outro pulo.

Observo uma claridade tímida já pedindo licença para entrar pela janela. Salto da cama e desbravo uma caça ao tesouro, um relógio que pudesse me informar as horas reais. Encontro um de pulso, de minha mãe, mas ainda não sei ver as horas nele. Então, sacudo minha irmã mais velha.

- Acorda! Hoje é o seu dia de me levar à escola. Anda, levanta logo! O despertador não tocou.

Ela abre os olhos com dificuldade e lhe entrego o objeto. Ainda sob o efeito do sono, ela me dá a notícia que eu não queria ouvir. Estamos atrasadas.

Em tempo, me apresento. Prazer, meu nome é Patricia, eu tenho 8 anos e sou aquela aluna dedicada que adora ir à escola. Hoje é dia de prova, na 2ª série B, e eu perdi a hora. Histeria traduz.

Alessandra, minha irmã, com 13 anos, muito mais para me acalmar, diz que ainda dá tempo. Em questão de poucos minutos estamos prontas. Ao abrir a porta do prédio, deparo-me com a chuva, que cai sem preguiça.

Não bastasse, está frio e o vento é cortante. São três quilômetros que nos separam da escola. A caminhada promete ser tensa. Ela volta ao apartamento e traz consigo um guarda-chuva. É o que temos.

- Hoje, vamos de ônibus. Só temos dinheiro para uma passagem, mas você passa por baixo da roleta, ela orienta. Eu apenas assinto, em agradecimento.

Por sorte, o ônibus logo chega. Eu, com minha mochila colorida nas costas, subo na frente. Minha irmã logo atrás. Antes de qualquer coisa, ela avisa ao cobrador que eu vou passar por baixo. Ele autoriza. E lá vou eu. Com as mãos e joelhos no piso molhado e sujo do ônibus, dou início à passagem.

Junto comigo vem a roleta. Não entendo porque se chama roleta, quando mais parece uma borboleta. E, tal qual uma, ela bateu asas. Na pressa, esqueci de tirar a mochila das costas e ela agarrou na roleta, arrastando-a comigo. No mesmo instante, o cobrador avisa o que já sabemos. Eu saio na frente e explico, quase chorando, que só temos dinheiro para uma condução.

- A culpa foi minha, moço. Por favor, deixa a minha irmã ficar e descer pela frente, suplico.

Ele, tão frio quanto o tempo lá fora, diz que minha irmã tem de descer. Ela não discute, nem implora. Apenas me olha com aquele olhar que abraça. Em seguida, me estende o guarda-chuva e diz: você segue porque sabe chegar.

- O senhor pode, ao menos, avisar o ponto em que ela precisa descer? - Ela pergunta educadamente ao cobrador antes de desembarcar. Ele apenas confirma com a cabeça. Ela informa o ponto em que devo saltar e, em poucas palavras, estão combinados.

Aquela foi a viagem mais longa de nossas vidas. Eu, no ônibus, preocupada com o pânico dela. Ela, na rua, a pé e na chuva, desesperada comigo sozinha no ônibus.

Enquanto houver memória em mim, não esquecerei o seu olhar, dizendo-me que eu podia, que eu conseguia ir sem ela.

Arrasada. Sentei-me em um banco na janela e passei minha mãozinha no vidro, na tentativa de desembaça-lo. Entre as gotas do lado externo, vejo que minha irmã inicia uma corrida atrás do veículo.

Ali, sozinha, com as mãos e joelhos sujos, naquele assento duro e gelado, à medida em que o ônibus se movimentava em baixa velocidade nos separando uma da outra, eu entendi o significado da palavra cuidado em sua essência.

Para confirmar o que ela havia me dito, por saber chegar, eu chego. A tempo. Quando sento, aliviada, em frente à minha carteira, penso nela. Será que correu até onde seu fôlego permitiu? Ou até perder o ônibus de vista? Terá se molhado muito?

As respostas não tardam. Já estou em aula, respondendo às questões da prova, quando ela aparece na porta da sala completamente molhada, ao lado da diretora da escola, e acena com a mão, como quem diz: eu estou aqui, estamos bem.

O episódio ficou guardado em segredo entre mim e minha irmã, que sempre transbordou amor. Ao restante da família foi compartilhada apenas a nota A, resultado daquela prova.

Por Patricia Limeres - em setembro de 2017.

Comentários

Tallita Záffia disse…
Lindo demais! lendo e visualizando a história... você precisa escrever um livro, de verdade!

Beijos!

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