Fiéis escudeiras

É julho de 2017. Sou convidada a deixar o computador de escanteio e escrever com o recurso papel e caneta. Faz tempo que não escrevo à mão, mas a simples ideia de mudar o jeito já me conquista.

Não demora muito e o desconforto dá as caras. Entre as primeiras linhas daquilo que ainda é um esboço, percebo, na medida em que escrevo, que os nós dos dedos anelar e mindinho deslizam sobre o papel marcado e roubam dele a tinta preta da caneta. O fenômeno ocorre porque sou canhota.

Como se não bastasse, não consigo ler as palavras que acabo de rabiscar, cobertas que estão pela minha própria mão. Inspiro profundamente. Não por impaciência ou ansiedade, mas porque sou tomada por uma sensação antiga, até então, adormecida.

O que me remete ao ano de 1983. Tenho 5 anos. Minha mãe e eu estamos sentadas no tapete da sala, apoiadas na mesinha de centro. Na verdade, estou de joelhos. À minha frente, uma brochura com linhas azuis e margens vermelhas. Carrego um lápis na mão esquerda. Sim, carrego. Porque a gente segura aquilo que é leve, mas o lápis pesa. No alcance da mão há uma borracha bastante gasta e os dedos já suados retêm parte dos farelos provocados pelo seu uso excessivo.

Não é a primeira vez que minha mãe se dedica à árdua tarefa de me apresentar, sem a menor paciência ou didática, diga-se de passagem, às vogais e consoantes do alfabeto.
- Vamos lá, ela diz antes de pronunciar e, ao mesmo tempo, escrever no caderno:

a – e – i – o – u

- Agora é a sua vez, incentiva ela. Então, eu repito a mesma sequência:

u – o – i – e – a


- NÃO! Está errado, ela quase grita. Apague tudo e comece de novo. Você tem de escrever da esquerda para a direita, entendeu? Ao dizer isso, ela faz o movimento frenético da mão sobre a página repetidas vezes. Apreensiva, eu apenas acompanho como se assistisse a uma partida de ping-pong. Mas não adianta. Minha mão tem vontade própria. Depois de algumas tentativas frustradas, ela desiste. É a partir dos 7 anos, quando ingresso na 1ª série, que aprendo a ler e escrever da origem certa ao destino satisfatório.

- Manhê, aprendi!!!

A decisão de me ensinar as letras partiu do instinto protetor de mãe. É que, quando criança, eu era muito miúda, magrinha. E ela tinha receio de me colocar na pré-escola porque as crianças poderiam judiar de mim e, por ser frágil, eu não saberia me defender. Ao mesmo tempo, ela não queria que eu ficasse atrasada. Mãe sofre.

De ouvir, em demasia, que eu era presa fácil de tão inofensiva, no que tange ao meu porte físico, inconscientemente busquei outras formas de defesa. Mais tarde, já alfabetizada, foi justamente na força das palavras que me refugiei. Afinal, descobri que podia me defender fazendo o uso apropriado delas. Também podia expressar medos e sentimentos, elencar curiosidades, registrar momentos e aliviar angústias.

Bilhetes, cartas e diários passaram a ser comuns no meu dia a dia, mas faltava-me vocabulário. Foi numa dessas ausências que notei a necessidade de ler mais. Lá em casa não tínhamos livros de leitura por prazer. Só os didáticos ocupavam as prateleiras. Mas isso não foi pretexto. Na falta dos meus, eu pegava emprestado com quem os tinha.

De volta às cartas, não raro, minhas amigas de adolescência recorriam a mim para redigi-las por elas. Perdi as contas de quantas vezes deparei-me escrevendo sobre coisas e sentimentos que não eram meus. Para mim, não era sacrifício. O anonimato dos meus escritos não me era incômodo. Ao contrário, era reconfortante saber que a sequência de palavras escolhidas por mim tocava alguém de alguma forma. Os sentimentos ali presentes eram verdadeiros, ainda que não fossem meus.

O tempo passa e, em 2007, resolvo abandonar os diários e cadernos e crio o blog INQUIETA-ME, um espaço virtual que, sem restrições, tamanho ou limite abriga tudo aquilo que emana do meu íntimo, sem me criticar, julgar ou tolher, nem me apontar o dedo em riste na cara. 

Daquela menina pequena e frágil não restou nada. Desde que foram apresentadas, as palavras têm sido suas fiéis escudeiras e, com toda a força que têm, a protegem dos outros, e sobretudo, de si mesma. Assim, em sua pequenez, ela se agigantou.

Por Patricia Limeres - em 14 de julho de 2017.

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