Realidade roubada
É inverno. Aconchegada em sua confortável poltrona de balanço, com um moletom surrado e meias de lã, contrastando em todos os aspectos com a juventude de seu corpo e, ao mesmo tempo, em completa sintonia com a bagagem invisível que carrega, Clarice tem em suas mãos nada mais, nada menos que um livro. Entre ela e o objeto, apenas expectativa.
Como que em uma espécie de ritual, ela encaixa a lombada do livro em uma de suas mãos enquanto a outra folheia as páginas, emanando de imediato o seu cheiro que, misturado ao do incenso que queima em silencio na pequena mesa ao lado, a faz cerrar os olhos por um momento. Assim, é estabelecido o primeiro contato com o que está por vir.
Clarice tem a crença de que as histórias dos livros escolhem seus leitores e, portanto, foi escolhida por aquela que estava prestes a lhe ser revelada. Mas, por que? Mesmo não sabendo a resposta, ela sente-se pronta.
Munida de convicção desliza sem pressa os dedos finos pela capa do livro, sentindo cada textura antes de abri-lo. Assim que o faz, as letras tatuadas na primeira página lhes dão as boas-vindas.
Sem reservas ou restrições ela ingressa naquele território ao qual ela foi apresentada apenas à sinopse. Trata-se de um romance entre uma jovem insegura e recolhida em si mesma e um rapaz que costuma ter sempre o que quer, sabe-se lá a que preço. Embora habitem tempos e mundos diferentes, eles têm algo em comum. A única coisa forte o bastante para transpor as barreiras que os separam: a dança.
Clarice foi fisgada de cara e a cada página lida mais sede de detalhes e desdobramentos ela sente. A identificação com a personagem principal é quase que real e, de alguma forma, a assusta. Já a raiva e antipatia pelo sapo da história são crescentes. Ela é o tipo de leitora que defende com unhas e dentes seus personagens preferidos.
Sem se dar conta, passam-se horas de leitura e a sede concreta compete com a sede de curiosidade. A realidade vence e Clarice faz uma pequena pausa para um chá de erva doce. Uma mera tentativa de esquentar o corpo e acalmar os ânimos. Porque a vontade dela, na verdade, é dizer umas boas verdades àquele babaca arrogante.
Lá pelas tantas, entre um capítulo e outro, algo no mínimo intrigante acontece. Ela não sabe bem o quê, mas o fato é que já não veste seu moletom e meias. Mais que isso. O aconchego e a segurança do seu lar foram substituídos pelo desconhecido. Isso não é possível. Teria ela adormecido? Não, certamente ela está bem desperta e o que vê é tão real quanto o livro que agora mesmo estava em suas mãos.
O lugar em que se encontra agora é um grande salão todo ornamentado com muito luxo e glamour. Parece um evento. Muitas pessoas circulam bem vestidas e há música. Por falar em trajes, o corpo de Clarice dá forma a um belíssimo vestido vermelho, com salto nos pés. Os cabelos estão presos num penteado elaborado e não é necessário se olhar no espelho para saber que está maquiada.
Que evento é esse? Quem são essas pessoas? E que diabos ela está fazendo ali? Essas perguntas lhe ocorrem e ela não faz ideia das respostas. Seus pensamentos são interrompidos por alguém que pede a atenção dos presentes ao microfone e, então, ela obtém a primeira resposta. O evento refere-se a uma competição de dança.
Antes que ela processe a informação por completo uma voz masculina a aborda ao mesmo tempo em que a pega por trás pelo cotovelo. A voz questiona sobre onde ela estava num tom severo e desconfiado. Pronta para esclarecer o equívoco, ela vira-se e, ao se deparar com ele – o babaca arrogante do livro, perde o chão e o ar, aliás, tudo o que gostaria de dizer a ele também lhe falta.
Nada faz qualquer sentido. Em voz alta, meio que para se convencer, ela diz que não pode ser verdade. Fred a interrompe daquilo que ele acredita ser uma crise de pânico e diz que precisam se aquecer. Sem discordar, ela se deixa guiar apenas para ganhar tempo. Esse tempo não vem. Logo em seguida eles são chamados à pista. Não ela, na verdade, mas a personagem do livro. Porém, ao que parece, agora elas são uma só.
O desespero se apossa de Clarice. Ela não pode dançar com Fred. Como assim? Ela sequer conhece a coreografia. Em uma fração de minuto ela prevê o desastre eminente. Então, tenta esclarecer, mas como explicar algo assim?
Já posicionados na pista de dança seus corpos se fundem e, com um respiro sincronizado, algo mais acontece. Os primeiros acordes da canção Vieste, de Ivan Lins, começam a reverberar pelo salão e, de alguma forma inexplicável, ela sabe. Por intuição ou instinto, ela simplesmente sabe o que fazer e é como se tivesse se preparado a vida inteira para aquele momento.
O que, em princípio, aparentava ser um fracasso anunciado se desenvolve agora com naturalidade e magia. Eles deslizam pelo chão dando, por vezes, a impressão de que até pairam no ar, tamanha a leveza e o entrosamento do casal. São dois corpos dançando a favor de um, como um. Enquanto dançam contam também uma história e sem a intermediação de qualquer palavra dizem o que precisam dizer um ao outro e ao público.
Cada toque de Fred desperta em Clarice uma faísca e os desenhos traçados no chão e no ar por seus movimentos são sublimes e possuem cor. Ela sempre pensou que esse estado era inatingível.
Num rápido distanciamento coreográfico dos corpos ela transita entre o real e o imaginário, confusa sobre qual é qual. É nesse momento que um fio condutor a puxa de volta para Fred roubando-a do transe. Agora, apenas um salto e um giro duplo a separam dele e, quando concluídos, estão frente a frente. Pelo breve instante que perduram os olhos nos olhos, os narizes colados em meio as respirações ofegantes, tudo ao redor para. E quando Fred pousa sua mão na nuca de Clarice, sinalizando o próximo ato, ela respira fundo e vira a página do livro que dá fim àquele capítulo. Ela está de volta.
Por Patricia Limeres – em 04 de julho de 2017.
Como que em uma espécie de ritual, ela encaixa a lombada do livro em uma de suas mãos enquanto a outra folheia as páginas, emanando de imediato o seu cheiro que, misturado ao do incenso que queima em silencio na pequena mesa ao lado, a faz cerrar os olhos por um momento. Assim, é estabelecido o primeiro contato com o que está por vir.
Clarice tem a crença de que as histórias dos livros escolhem seus leitores e, portanto, foi escolhida por aquela que estava prestes a lhe ser revelada. Mas, por que? Mesmo não sabendo a resposta, ela sente-se pronta.
Munida de convicção desliza sem pressa os dedos finos pela capa do livro, sentindo cada textura antes de abri-lo. Assim que o faz, as letras tatuadas na primeira página lhes dão as boas-vindas.
Sem reservas ou restrições ela ingressa naquele território ao qual ela foi apresentada apenas à sinopse. Trata-se de um romance entre uma jovem insegura e recolhida em si mesma e um rapaz que costuma ter sempre o que quer, sabe-se lá a que preço. Embora habitem tempos e mundos diferentes, eles têm algo em comum. A única coisa forte o bastante para transpor as barreiras que os separam: a dança.
Clarice foi fisgada de cara e a cada página lida mais sede de detalhes e desdobramentos ela sente. A identificação com a personagem principal é quase que real e, de alguma forma, a assusta. Já a raiva e antipatia pelo sapo da história são crescentes. Ela é o tipo de leitora que defende com unhas e dentes seus personagens preferidos.
Sem se dar conta, passam-se horas de leitura e a sede concreta compete com a sede de curiosidade. A realidade vence e Clarice faz uma pequena pausa para um chá de erva doce. Uma mera tentativa de esquentar o corpo e acalmar os ânimos. Porque a vontade dela, na verdade, é dizer umas boas verdades àquele babaca arrogante.
Lá pelas tantas, entre um capítulo e outro, algo no mínimo intrigante acontece. Ela não sabe bem o quê, mas o fato é que já não veste seu moletom e meias. Mais que isso. O aconchego e a segurança do seu lar foram substituídos pelo desconhecido. Isso não é possível. Teria ela adormecido? Não, certamente ela está bem desperta e o que vê é tão real quanto o livro que agora mesmo estava em suas mãos.
O lugar em que se encontra agora é um grande salão todo ornamentado com muito luxo e glamour. Parece um evento. Muitas pessoas circulam bem vestidas e há música. Por falar em trajes, o corpo de Clarice dá forma a um belíssimo vestido vermelho, com salto nos pés. Os cabelos estão presos num penteado elaborado e não é necessário se olhar no espelho para saber que está maquiada.
Que evento é esse? Quem são essas pessoas? E que diabos ela está fazendo ali? Essas perguntas lhe ocorrem e ela não faz ideia das respostas. Seus pensamentos são interrompidos por alguém que pede a atenção dos presentes ao microfone e, então, ela obtém a primeira resposta. O evento refere-se a uma competição de dança.
Antes que ela processe a informação por completo uma voz masculina a aborda ao mesmo tempo em que a pega por trás pelo cotovelo. A voz questiona sobre onde ela estava num tom severo e desconfiado. Pronta para esclarecer o equívoco, ela vira-se e, ao se deparar com ele – o babaca arrogante do livro, perde o chão e o ar, aliás, tudo o que gostaria de dizer a ele também lhe falta.
Nada faz qualquer sentido. Em voz alta, meio que para se convencer, ela diz que não pode ser verdade. Fred a interrompe daquilo que ele acredita ser uma crise de pânico e diz que precisam se aquecer. Sem discordar, ela se deixa guiar apenas para ganhar tempo. Esse tempo não vem. Logo em seguida eles são chamados à pista. Não ela, na verdade, mas a personagem do livro. Porém, ao que parece, agora elas são uma só.
O desespero se apossa de Clarice. Ela não pode dançar com Fred. Como assim? Ela sequer conhece a coreografia. Em uma fração de minuto ela prevê o desastre eminente. Então, tenta esclarecer, mas como explicar algo assim?
Já posicionados na pista de dança seus corpos se fundem e, com um respiro sincronizado, algo mais acontece. Os primeiros acordes da canção Vieste, de Ivan Lins, começam a reverberar pelo salão e, de alguma forma inexplicável, ela sabe. Por intuição ou instinto, ela simplesmente sabe o que fazer e é como se tivesse se preparado a vida inteira para aquele momento.
O que, em princípio, aparentava ser um fracasso anunciado se desenvolve agora com naturalidade e magia. Eles deslizam pelo chão dando, por vezes, a impressão de que até pairam no ar, tamanha a leveza e o entrosamento do casal. São dois corpos dançando a favor de um, como um. Enquanto dançam contam também uma história e sem a intermediação de qualquer palavra dizem o que precisam dizer um ao outro e ao público.
Cada toque de Fred desperta em Clarice uma faísca e os desenhos traçados no chão e no ar por seus movimentos são sublimes e possuem cor. Ela sempre pensou que esse estado era inatingível.
Num rápido distanciamento coreográfico dos corpos ela transita entre o real e o imaginário, confusa sobre qual é qual. É nesse momento que um fio condutor a puxa de volta para Fred roubando-a do transe. Agora, apenas um salto e um giro duplo a separam dele e, quando concluídos, estão frente a frente. Pelo breve instante que perduram os olhos nos olhos, os narizes colados em meio as respirações ofegantes, tudo ao redor para. E quando Fred pousa sua mão na nuca de Clarice, sinalizando o próximo ato, ela respira fundo e vira a página do livro que dá fim àquele capítulo. Ela está de volta.
Por Patricia Limeres – em 04 de julho de 2017.
Comentários
Este texto que acabo de ler é o meu primeiro encantamento aqui no seu lindo Blog!
Amei! Voltarei mais vezes, para viver a magia da sua escrita! beijos,
Rosa Maria