Cartas não olham nos olhos

Essa semana uma porta foi aberta. Uma vez aberta, essa porta deu passagem às lembranças. Portanto, tenho a impressão de que é chegada a hora e a vez das memórias. Refiro-me às minhas memórias, é claro. E aviso, desde já, que prefiro as doces, embora eu creia que as amargas também estejam guardadas. Bem guardadas em lugares inacessíveis de mim. Porém, se puder escolher, prefiro que elas continuem lá...assim, quem sabe um dia, ignoradas de todo, resolvam desaparecer como que por encanto. Sabe, pensando bem, não seria uma má ideia. Ou seria? Acho que essa inquietação pode ser tratada num futuro texto.

Hoje, quero dar atenção especial às memórias boas. Àquelas que fazem surgir nos lábios o sorriso tímido e espontâneo que traz em si a vontade de viver tais momentos de novo. A memória que vou compartilhar aqui fez exatamente isso comigo. De repente, me surpreendi olhando para o nada, com o sorriso brotando lenta e suavemente na face, acompanhado de uma vontade sem tamanho de poder voltar o tempo e reviver parte daquilo, ainda que por um instante.

Na realidade, foi como se, de fato, eu tivesse revivido. Na reprodução das cenas, tudo pareceu tão nítido, tão cheio de cores e detalhes que fico até na dúvida se foi real ou apenas lembranças da realidade que passou.

Para começar, deparei-me comigo ainda menina. Devia ter uns 12 anos. É, acho que não mais que isso. Era um sábado e eu estava meio tristonha, pois minha mãe havia me colocado de castigo. Tudo porque dois finais de semana antes ela havia me alertado para que eu não fosse para a casa dos meus tios, que ficava em uma cidade vizinha à nossa. Eu estava indo para lá com muita frequência e a minha mãe, que trabalhava a semana inteira, inclusive, no sábado, não conseguia ficar comigo direito.

Resumindo: eu fui egoísta e não obedeci. Fui para Cubatão. Afinal, lá, eu e minhas primas, Renata e Vanessa, já tínhamos uma série de atividades programadas e eu não podia ficar de fora. Na minha cabeça, minha mãe haveria de entender. Mas...naturalmente ela não entendeu. Ao contrário, ela ficou extremamente decepcionada e triste comigo e fez o que havia avisado que faria se eu não seguisse suas orientações. E lá estava eu, de castigo.

O castigo tinha duração de um mês, com possibilidade de prorrogação em caso de mau comportamento. Aquele era o segundo final de semana de castigo. Ainda faltava uma eternidade para a punição chegar ao fim. Com isso, eu não conseguia pensar em nada além do que poderia estar fazendo com as minhas primas naquele momento. Uma coisa era certa: certamente nós estaríamos nos divertindo à beça. Porque era sempre assim. Tudo era motivo para uma nova brincadeira.

Enquanto estava mergulhada nesses pensamentos, tocou a campainha de casa.
- Que chatice! Agora, querem me impedir até de pensar – falei em voz baixa, para que a minha mãe não ouvisse e, ao mesmo tempo, me dirigi à porta.

Era o carteiro. Entre contas para pagar, jornais publicitários e extrato bancário, havia uma carta. E era para mim. Era sim. Tinha o meu nome e sobrenomes no destinatário. Quando virei o envelope para ver o remetente, embora já pudesse reconhecer a letra, tive a confirmação: era uma carta das minhas primas.

Não sei descrever em palavras a alegria que me invadiu naquele momento. Também não sei, ao certo, se foi por conta da surpresa ou se pela carta em si, o que sei e posso garantir é que eu me senti lembrada. Foi como ter a certeza, mesmo antes de abrir o envelope, de que elas estavam sentindo a minha ausência, tanto quanto eu sentia a delas.

Na minha casa não tinha telefone. Naquela época não existia celular. Eu não podia ir para a casa delas e, portanto, estávamos incomunicáveis. Até que...mais uma vez, a criatividade falou mais alto. Elas resolveram a equação escrevendo-me uma carta, contando sobre os finais de semana delas sem mim e, sobretudo, falando sobre a contagem regressiva para a minha “libertação”.

A simples iniciativa delas me sensibilizou tanto que ainda recordo-me da cor da caneta que usaram na carta: rosa. Previsível, né? Consigo lembrar até do cheiro. Era de rosas. Sim, era aquele tipo de caneta de dez cores e com um cheiro diferente para cada cor.

E, sem querer, querendo, essa foi a mais nova brincadeira que inventamos. Passamos a nos corresponder por cartas. Fiquei dois meses de castigo (e quero deixar claro que não foi por mau comportamento) e as semanas passaram sem que eu sentisse tanto. A cada carta uma nova história para contar, uma nova situação ou até um novo drama - coisas de adolescentes. Assim que colocávamos a carta nos Correios, já ficávamos na expectativa de receber a resposta. Era uma sensação gostosa aquela.

Na última carta que recebi delas, no último parágrafo, elas faziam um apelo à minha mãe: “tia, por favor, tira a Paty do castigo. Estamos com saudades dela.” No final de semana seguinte, eu estava em Cubatão.

Dizem que cartas não olham nos olhos, mas posso dizer que têm o poder de chegar ao coração.

Por Patricia Limeres - em 14 de julho de 2010.

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